Dengue: Aspectos Clínicos, Diagnóstico, Monitoramento Laboratorial e Tratamento

A dengue é uma doença viral transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, que apresenta grande relevância na saúde pública global. Caracterizada por uma ampla gama de manifestações clínicas, desde formas leves até graves, a dengue representa um desafio significativo devido à sua capacidade de causar surtos e epidemias em áreas tropicais e subtropicais. Este artigo visa abordar de forma abrangente a dengue, incluindo aspectos epidemiológicos, etiológicos, fisiopatológicos, diagnósticos e terapêuticos, com base em evidências científicas atuais.

Aedes albopictus mosquito (James D. Gathany)
Epidemiologia

A dengue é endêmica em mais de 100 países, com uma incidência global estimada de 390 milhões de infecções por ano, das quais 96 milhões manifestam-se clinicamente . As regiões mais afetadas incluem o Sudeste Asiático, as Américas e o Pacífico Ocidental. No Brasil, a dengue é um problema de saúde pública recorrente, com surtos sazonais que afetam milhões de pessoas.

Etiologia e Transmissão

O agente etiológico da dengue é um vírus do gênero Flavivirus, pertencente à família Flaviviridae. Existem quatro sorotipos distintos de vírus da dengue (DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4), que são transmitidos aos seres humanos principalmente pela picada do mosquito Aedes aegypti. A transmissão também pode ocorrer através de Aedes albopictus em menor escala. A infecção por um sorotipo confere imunidade específica de longa duração, mas não protege contra os outros sorotipos, o que pode resultar em infecções subsequentes mais graves devido ao fenômeno da amplificação dependente de anticorpos (ADE) .

Fisiopatologia

A patogênese da dengue envolve uma complexa interação entre o vírus, o vetor e a resposta imune do hospedeiro. Após a infecção inicial, o vírus se replica nos linfonodos regionais e dissemina-se através do sistema linfático e sanguíneo. A resposta imunológica inicial envolve a ativação de células dendríticas, macrófagos e linfócitos T, que produzem citocinas e quimiocinas inflamatórias.

A febre da dengue é caracterizada por uma fase febril aguda seguida por uma fase crítica, onde o risco de complicações graves como a dengue grave (anteriormente chamada dengue hemorrágica) aumenta. A dengue grave pode resultar em choque, hemorragia severa e falência orgânica devido ao aumento da permeabilidade vascular, extravasamento de plasma e trombocitopenia.

Diagnóstico

O diagnóstico da dengue é um processo multifacetado que envolve a avaliação clínica e o uso de exames laboratoriais específicos para confirmar a infecção e monitorar a evolução da doença. Este processo é crucial para o manejo adequado dos pacientes, especialmente nos casos em que há risco de progressão para formas graves da doença. A seguir, são detalhados os principais métodos de diagnóstico da dengue.

Diagnóstico Clínico

O diagnóstico clínico inicial da dengue baseia-se na identificação de sinais e sintomas característicos, em conjunto com a história de exposição ao vetor em áreas endêmicas. Os sintomas típicos da dengue incluem febre alta de início súbito, cefaleia intensa, dor retro-orbital, mialgia, artralgia, exantema e manifestações hemorrágicas leves, como petéquias e epistaxe. A febre geralmente dura de 2 a 7 dias e é acompanhada por outros sintomas como náuseas, vômitos e fadiga.

Na fase crítica da doença, que geralmente ocorre entre o terceiro e sétimo dia após o início dos sintomas, pode haver um rápido declínio da febre e o surgimento de sinais de alerta para dengue grave, como dor abdominal intensa, vômitos persistentes, sangramentos mucosos, letargia, hepatomegalia e aumento da permeabilidade vascular, que pode levar ao choque.

Diagnóstico Laboratorial

Hemograma

O hemograma é um exame laboratorial essencial e amplamente utilizado no diagnóstico e monitoramento da dengue. Ele fornece informações cruciais sobre as diferentes linhagens celulares do sangue, ajudando a identificar alterações que podem indicar a presença e a gravidade da infecção pelo vírus da dengue. A seguir, são detalhadas as principais alterações observadas no hemograma de pacientes com dengue e suas implicações clínicas.

Leucopenia

  • Definição: Leucopenia é a redução do número total de leucócitos (glóbulos brancos) no sangue, tipicamente abaixo de 4.000 células/mm³.
  • Implicações Clínicas: A leucopenia é um achado comum na dengue e ocorre devido ao efeito citopático direto do vírus da dengue sobre os leucócitos, além da resposta imunológica do corpo à infecção. Essa diminuição nos leucócitos pode prejudicar a capacidade do organismo de combater outras infecções, aumentando o risco de infecções secundárias.
  • Interpretação: Embora não seja específica para a dengue, a presença de leucopenia em um paciente com sintomas clínicos sugestivos de dengue pode reforçar a suspeita diagnóstica, especialmente em áreas endêmicas.

Trombocitopenia

  • Definição: Trombocitopenia é a redução do número de plaquetas no sangue, geralmente abaixo de 150.000 células/mm³. Em casos graves, os níveis podem cair abaixo de 50.000 células/mm³.
  • Implicações Clínicas: A trombocitopenia é uma característica marcante da dengue e está associada ao aumento do risco de sangramentos. A redução no número de plaquetas ocorre devido à destruição periférica das plaquetas e ao sequestro de plaquetas no baço, além do efeito direto do vírus sobre a medula óssea.
  • Interpretação: A trombocitopenia é um dos sinais de alerta para a progressão para formas graves da dengue, como a dengue hemorrágica e a síndrome do choque da dengue. Monitorar os níveis de plaquetas é crucial para avaliar o risco de complicações hemorrágicas e determinar a necessidade de intervenções terapêuticas.

Hemoconcentração

  • Definição: Hemoconcentração refere-se ao aumento do hematócrito (proporção do volume de células vermelhas no sangue) acima dos valores normais, indicando concentração sanguínea.
  • Implicações Clínicas: A hemoconcentração na dengue é um indicador de extravasamento plasmático, que pode levar a complicações graves como a síndrome do choque da dengue. O aumento do hematócrito ocorre devido à perda de plasma para o espaço extravascular, resultando em um aumento relativo das células vermelhas no sangue.
  • Interpretação: A monitorização do hematócrito é vital para a detecção precoce de extravasamento plasmático e choque. Uma elevação abrupta do hematócrito, acompanhada por uma queda na pressão arterial, deve alertar os clínicos para o risco de choque hipovolêmico, exigindo intervenções imediatas para restaurar o volume plasmático e manter a perfusão tecidual.

Alterações nos Leucócitos

Além da leucopenia, a dengue pode causar alterações específicas nos diferentes tipos de leucócitos, que podem ser observadas no hemograma e no exame microscópico do sangue periférico:

Linfócitos Atípicos

  • Definição: Linfócitos atípicos são linfócitos com morfologia anormal, frequentemente maiores do que os linfócitos normais, com citoplasma abundante e basofílico, e núcleo irregular.
  • Implicações Clínicas: A presença de linfócitos atípicos é um achado comum na dengue e pode refletir a resposta imunológica do corpo à infecção viral. Esses linfócitos reativos são um indicador de ativação imunológica e podem ser encontrados em várias infecções virais.
  • Interpretação: A observação de linfócitos atípicos em um paciente com sintomas clínicos de dengue pode reforçar o diagnóstico, especialmente quando acompanhada de outras alterações hematológicas típicas.

Neutropenia

  • Definição: Neutropenia é a redução do número de neutrófilos no sangue, geralmente abaixo de 1.500 células/mm³.
  • Implicações Clínicas: A neutropenia na dengue ocorre devido à supressão medular pelo vírus e ao aumento da destruição periférica dos neutrófilos. A redução nos neutrófilos pode aumentar a susceptibilidade a infecções bacterianas secundárias.
  • Interpretação: A neutropenia deve ser monitorada cuidadosamente, pois pode predispor o paciente a infecções graves. Em casos de neutropenia severa, medidas profiláticas podem ser necessárias para prevenir infecções oportunistas.

Monocitose

  • Definição: Monocitose é o aumento do número de monócitos no sangue, geralmente acima de 800 células/mm³.
  • Implicações Clínicas: A monocitose pode ocorrer em resposta à infecção viral e à inflamação associada à dengue. Os monócitos desempenham um papel importante na fagocitose de células infectadas e na apresentação de antígenos ao sistema imunológico.
  • Interpretação: Embora a monocitose não seja específica da dengue, sua presença pode indicar a ativação do sistema imunológico em resposta à infecção viral.

Monitoramento e Avaliação

O hemograma deve ser realizado repetidamente durante o curso da doença para monitorar a progressão das alterações hematológicas e avaliar a resposta ao tratamento. As seguintes práticas são recomendadas:

  • Avaliações Diárias: Em pacientes com suspeita ou diagnóstico confirmado de dengue, o hemograma deve ser realizado diariamente, especialmente entre o terceiro e o sétimo dia após o início dos sintomas, período em que as complicações graves são mais prováveis de ocorrer.
  • Sinais de Alerta: Atenção especial deve ser dada à queda abrupta do número de plaquetas, aumento do hematócrito e sintomas clínicos de alerta, como dor abdominal intensa, vômitos persistentes, sangramentos mucosos e letargia.
  • Intervenções: Pacientes com trombocitopenia severa (< 50.000 células/mm³) ou sinais de extravasamento plasmático devem ser manejados em ambiente hospitalar com monitorização intensiva e intervenções apropriadas, como reposição de fluidos intravenosos e suporte hemodinâmico.

Diagnóstico Sorológico

Os testes sorológicos são amplamente utilizados para detectar a presença de anticorpos específicos contra o vírus da dengue:

  • IgM ELISA (Enzyme-Linked Immunosorbent Assay): Este teste detecta anticorpos IgM, que aparecem entre o terceiro e quinto dia após o início dos sintomas e permanecem detectáveis por até três meses. A presença de IgM indica infecção recente.
  • IgG ELISA: Os anticorpos IgG aparecem mais tardiamente, geralmente após o sétimo dia de infecção, e podem permanecer por anos. A detecção de IgG pode indicar infecção passada ou recente se os títulos forem elevados.
    ELISA Plate (Pamela Cassiday).

Diagnóstico Molecular

Os métodos moleculares, como a reação em cadeia da polimerase com transcriptase reversa (RT-PCR), são altamente sensíveis e específicos para a detecção do RNA viral e são considerados o padrão ouro para o diagnóstico precoce da dengue:

  • RT-PCR: Permite a detecção direta do RNA do vírus da dengue nos primeiros dias da infecção, antes do desenvolvimento de anticorpos. Este método é útil para identificar o sorotipo viral e é essencial para o diagnóstico durante a fase aguda da doença.

Testes Rápidos

Os testes rápidos de diagnóstico (TRD) são utilizados em contextos de surtos devido à sua praticidade e rapidez na obtenção de resultados. Esses testes podem detectar antígenos virais ou anticorpos (IgM e IgG) diretamente no ponto de atendimento:

  • NS1 Antígeno: O teste para o antígeno NS1 é um método rápido que pode detectar a presença do vírus nos primeiros dias de infecção. A proteína NS1 é um marcador viral circulante e pode ser detectada antes da produção de anticorpos.
  • Combo Teste Rápido: Este teste combina a detecção do antígeno NS1 com a detecção de anticorpos IgM e IgG, proporcionando um diagnóstico abrangente ao longo das diferentes fases da infecção.

Diagnóstico Diferencial

A dengue apresenta uma sintomatologia que pode ser confundida com outras doenças febris agudas, especialmente em áreas endêmicas para várias doenças tropicais. É importante realizar o diagnóstico diferencial para excluir condições como:

  • Chikungunya: Manifestações articulares mais intensas e prolongadas do que a dengue.
  • Zika: Pode causar exantema mais intenso e frequentemente associado a conjuntivite e complicações neurológicas.
  • Febre Amarela: Pode apresentar icterícia e insuficiência hepática em casos graves.
  • Malária: Presença de parasitas no sangue, detectados por esfregaço sanguíneo ou teste rápido de malária.
  • Febre Tifoide: Caracterizada por febre prolongada e sintomas gastrointestinais, com diagnóstico confirmado por cultura de sangue ou medula óssea.
  • Leptospirose: Associada a icterícia, insuficiência renal e alterações hepáticas, com diagnóstico confirmado por sorologia ou PCR.


Tabela Diagnóstica da Dengue
Método Diagnóstico Descrição Alterações/Resultados Esperados Implicações Clínicas
IgM ELISA Teste sorológico que detecta anticorpos IgM contra o vírus da dengue. Detecção de IgM a partir do 4º dia após o início dos sintomas, persiste por 2-3 meses. Indica infecção recente por dengue. Útil para diagnóstico inicial.
IgG ELISA Teste sorológico que detecta anticorpos IgG contra o vírus da dengue. Detecção de IgG após IgM, persiste por anos. Indica infecção passada ou recente por dengue. Útil para determinar exposição anterior.
Teste de Antígeno NS1 Detecta o antígeno NS1 do vírus da dengue no sangue. Presença de NS1 nos primeiros dias de infecção (1-7 dias). Útil para diagnóstico precoce. Alta sensibilidade nos primeiros dias de infecção.
RT-PCR Teste molecular que detecta RNA do vírus da dengue. Detecção de RNA viral nos primeiros 5-7 dias de sintomas. Alta sensibilidade e especificidade. Útil para confirmação precoce e identificação de sorotipos.
Hemograma Avaliação das células sanguíneas: leucócitos, plaquetas e hematócrito. Leucopenia, trombocitopenia, hemoconcentração. Monitoramento essencial da progressão da doença e risco de complicações.
Linfócitos Atípicos Exame microscópico dos leucócitos. Presença de linfócitos atípicos. Indica resposta imunológica ativa à infecção viral.
Neutropenia Contagem de neutrófilos no hemograma. Redução dos neutrófilos (neutropenia). Pode aumentar a susceptibilidade a infecções bacterianas secundárias.
Monocitose Contagem de monócitos no hemograma. Aumento dos monócitos (monocitose). Reflete resposta inflamatória e imunológica à infecção.


Monitoramento e Prognóstico

O monitoramento contínuo dos pacientes com dengue é crucial para identificar sinais de alerta e complicações graves precocemente. Exames laboratoriais seriados, como hemograma e hematócrito, são necessários para avaliar a progressão da doença e a resposta ao tratamento. A observação clínica deve focar na identificação de sinais de choque e sangramentos, que requerem intervenção imediata.

Tratamento

Não existe um tratamento antiviral específico para a dengue. O manejo é principalmente sintomático e de suporte, com ênfase na hidratação adequada e no monitoramento das complicações. O uso de paracetamol é recomendado para o controle da febre e da dor, enquanto o uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) deve ser evitado devido ao risco de sangramento.

Manejo da Dengue Grave

O manejo da dengue grave requer cuidados intensivos, incluindo reposição de fluidos intravenosos, transfusão de componentes sanguíneos e suporte hemodinâmico. A monitoração rigorosa é essencial para detectar sinais de choque e outras complicações precocemente .

Prevenção e Controle

A prevenção da dengue envolve medidas de controle do vetor, como a eliminação de criadouros de mosquitos, o uso de inseticidas e a proteção individual contra picadas de mosquitos. Campanhas de conscientização pública são fundamentais para reduzir a incidência da doença.

Conclusão

A dengue continua a ser um desafio de saúde pública global devido à sua alta incidência, capacidade de causar surtos e potenciais complicações graves. A compreensão dos aspectos epidemiológicos, etiológicos, fisiopatológicos e diagnósticos da doença é essencial para seu manejo eficaz. Medidas preventivas e de controle são cruciais para reduzir a carga da dengue, e o desenvolvimento de vacinas mais seguras e eficazes é uma prioridade na pesquisa atual.

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Dengue: Aspectos Clínicos, Diagnóstico, Monitoramento Laboratorial e Tratamento Dengue: Aspectos Clínicos, Diagnóstico, Monitoramento Laboratorial e Tratamento Reviewed by Carlos Wallace on maio 30, 2024 Rating: 5

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