Choque - Avaliação Laboratorial

O choque é uma condição médica crítica caracterizada pela inadequação da perfusão tecidual e oxigenação, resultando em disfunção celular e potencialmente levando à falência múltipla de órgãos. Essa condição pode surgir de várias etiologias, incluindo hipovolemia, cardiogênico, distributivo (como o choque séptico), e obstrutivo. A avaliação laboratorial é essencial para o diagnóstico, monitoramento e manejo do choque, fornecendo dados cruciais sobre a gravidade da doença, a resposta ao tratamento e a identificação de complicações.

Fisiopatologia do Choque

O choque pode ser classificado em diferentes tipos, cada um com sua fisiopatologia distinta:

  1. Choque Hipovolêmico: Decorrente de uma perda significativa de volume sanguíneo ou fluidos corporais, como ocorre em hemorragias, desidratação severa ou queimaduras extensas. A redução do volume intravascular leva à diminuição do retorno venoso ao coração e, consequentemente, à redução do débito cardíaco e da perfusão tecidual.

  2. Choque Cardiogênico: Resulta de uma disfunção cardíaca que compromete o bombeamento eficaz do sangue, como em infartos do miocárdio, cardiomiopatias ou arritmias severas. A falha do miocárdio em manter um débito cardíaco adequado resulta em má perfusão dos órgãos.

  3. Choque Distributivo: Caracterizado pela vasodilatação e distribuição inadequada do sangue, como observado no choque séptico, anafilático e neurogênico. A vasodilatação periférica e o aumento da permeabilidade capilar causam uma queda na resistência vascular sistêmica e, muitas vezes, hipoperfusão tecidual.

  4. Choque Obstrutivo: Decorrente de obstruções que impedem o fluxo sanguíneo adequado, como tamponamento cardíaco, embolia pulmonar massiva ou pneumotórax hipertensivo. Essas condições limitam o enchimento ventricular ou a ejeção do sangue, levando à diminuição do débito cardíaco.


Avaliação Laboratorial no Choque

A avaliação laboratorial no choque é multifacetada e inclui uma série de testes que ajudam na identificação da causa subjacente, avaliação da gravidade e monitoramento da resposta terapêutica.

Hemograma Completo (HC)

O hemograma completo é uma ferramenta fundamental na avaliação inicial do paciente em choque. Ele fornece informações sobre a contagem de células sanguíneas, que podem indicar diferentes condições subjacentes:

  • Leucocitose ou leucopenia: Uma contagem elevada de leucócitos pode indicar uma infecção ou uma resposta inflamatória, enquanto a leucopenia pode ser observada em infecções graves, como a sepse.
  • Anemia: A presença de anemia pode sugerir uma perda significativa de sangue, comum em choque hipovolêmico.
  • Trombocitopenia: Uma baixa contagem de plaquetas é frequentemente observada em choque séptico devido ao consumo plaquetário e à CIVD.
Gasometria Arterial

A gasometria arterial é crucial para avaliar a oxigenação e o equilíbrio ácido-base no choque:

  • Acidose Metabólica: A acidose metabólica, caracterizada por um pH arterial baixo e bicarbonato reduzido, indica má perfusão tecidual e metabolismo anaeróbico. É um sinal de severidade e prognóstico ruim no choque.
  • Hipoxemia: Níveis reduzidos de oxigênio arterial (PaO2) indicam comprometimento da oxigenação, frequentemente visto em choque cardiogênico e séptico.
  • Lactato: O lactato elevado é um marcador sensível de hipóxia tecidual. Níveis persistentemente elevados após a ressuscitação inicial são associados a um prognóstico desfavorável.
Função Renal (Creatinina e Ureia)

A função renal é frequentemente comprometida no choque devido à má perfusão renal:

  • Creatinina e Ureia Elevadas: Indicam insuficiência renal aguda, um resultado comum de má perfusão prolongada dos rins. Esses marcadores são críticos para monitorar a função renal e ajustar o manejo terapêutico.
Marcadores de Lesão Miocárdica (Troponina e CK-MB)

No choque cardiogênico, a lesão miocárdica é uma preocupação primária:

  • Troponina e CK-MB: Níveis elevados desses marcadores indicam lesão miocárdica, como infarto do miocárdio. A elevação de troponina é altamente sensível e específica para lesão miocárdica, enquanto a CK-MB pode ser utilizada para monitorar a extensão e o progresso da lesão.
Procalcitonina e Proteína C-reativa (PCR)

Esses marcadores são particularmente úteis no choque séptico:

  • Procalcitonina Elevada: A procalcitonina é um marcador específico de infecção bacteriana e pode ajudar a distinguir entre sepse e outras causas de inflamação. Níveis elevados estão correlacionados com a gravidade da infecção.
  • Proteína C-reativa (PCR): A PCR é um marcador não específico de inflamação. Níveis elevados indicam uma resposta inflamatória sistêmica, comum em choque séptico.
Função Hepática (ALT, AST, Bilirrubinas)

A avaliação da função hepática é importante no manejo do choque:

  • ALT e AST Elevadas: Indicativas de lesão hepatocelular. Essas elevações podem ocorrer devido à hipóxia prolongada ou devido ao efeito direto de toxinas ou sepsis no fígado.
  • Bilirrubinas Elevadas: Sugerem disfunção hepática ou hemólise. A hiperbilirrubinemia pode complicar o choque, indicando uma lesão hepática mais grave.
Coagulograma (PT, aPTT, Fibrinogênio, D-dímero)

A avaliação da coagulação é crítica no choque, especialmente no choque séptico onde a CIVD é uma complicação comum:

  • Prolongamento de PT e aPTT: Indicativos de uma desordem na coagulação. Prolongamentos significativos sugerem consumo de fatores de coagulação na CIVD.
  • Redução de Fibrinogênio: O fibrinogênio é um marcador de consumo na coagulação. Níveis baixos são encontrados na CIVD.
  • Aumento de D-dímero: Indica degradação de fibrina, um marcador sensível de atividade trombótica e fibrinolítica elevada, comum na CIVD.
Exame Laboratorial Choque Hipovolêmico Choque Cardiogênico Choque Distributivo Choque Obstrutivo
Hemograma Completo (HC) Anemia (em caso de hemorragia)
Leucocitose por resposta ao estresse
Leucocitose devido a estresse
Possível leucopenia em choque prolongado
Leucocitose ou leucopenia no choque séptico
Trombocitopenia em sépsis
Leucocitose devido a estresse
Gasometria Arterial Acidose metabólica devido à má perfusão
Hipoxemia leve a moderada
Acidose metabólica
Hipoxemia devido à congestão pulmonar
Acidose metabólica
Hipoxemia em choque séptico severo
Acidose metabólica
Hipoxemia variável
Lactato Aumento devido à má perfusão tecidual Aumento devido à má perfusão tecidual Aumento significativo no choque séptico Aumento devido à má perfusão tecidual
Função Renal Aumento de creatinina e ureia devido à má perfusão renal Aumento de creatinina e ureia devido à má perfusão renal Aumento de creatinina e ureia em choque séptico Aumento de creatinina e ureia devido à má perfusão renal
Marcadores de Lesão Miocárdica Normais (exceto em trauma concomitante) Elevação de troponina e CK-MB em caso de infarto Normais (exceto em disfunção cardíaca preexistente) Normais (exceto em disfunção cardíaca preexistente)
Procalcitonina e PCR Normal ou leve aumento em casos de hemorragia severa Aumento leve devido ao estresse inflamatório Aumento significativo no choque séptico Normal ou leve aumento devido ao estresse inflamatório
Função Hepática ALT e AST aumentadas em casos severos de hipóxia
Bilirrubinas normais a levemente aumentadas
ALT e AST aumentadas devido à congestão hepática
Bilirrubinas normais a aumentadas
ALT e AST aumentadas no choque séptico
Bilirrubinas aumentadas
ALT e AST normais a levemente aumentadas
Bilirrubinas normais a levemente aumentadas
Coagulograma PT e aPTT normais a levemente aumentados em hemorragia PT e aPTT normais (exceto em disfunção hepática) Prolongamento de PT e aPTT no choque séptico
Redução de fibrinogênio
Aumento de D-dímero
PT e aPTT normais (exceto em disfunção hepática)

Manejo Terapêutico Baseado em Avaliação Laboratorial

A avaliação laboratorial contínua é essencial para guiar o manejo terapêutico do choque:

  1. Reposição Volêmica: A monitorização dos eletrólitos e a gasometria arterial ajudam a guiar a reposição de fluidos, visando corrigir a acidose metabólica e melhorar a perfusão tecidual.
  2. Vasopressores e Inotrópicos: A monitorização da função renal e dos níveis de lactato orienta o uso de vasopressores e inotrópicos para melhorar a pressão arterial e o débito cardíaco.
  3. Antibióticos e Controle de Infecção: No choque séptico, a procalcitonina e a PCR ajudam a monitorar a resposta aos antibióticos e o controle da infecção.
  4. Correção de Coagulopatias: O coagulograma é essencial para guiar a administração de produtos sanguíneos como plaquetas, plasma fresco congelado e crioprecipitado, especialmente em casos de CIVD.

Conclusão

O choque é uma condição médica complexa que requer uma avaliação laboratorial abrangente para diagnóstico, monitoramento e manejo adequado. A integração de diferentes testes laboratoriais fornece uma visão detalhada da fisiopatologia subjacente, permitindo intervenções terapêuticas mais precisas e eficazes. A abordagem multidisciplinar, envolvendo médicos, bioquímicos e outros profissionais de saúde, é fundamental para melhorar os desfechos dos pacientes em choque.


Referências

  1. ABREU, M. T.; COSTA, R. A.; DIAS, L. G. Avaliação laboratorial no manejo do choque. Revista Brasileira de Medicina, v. 75, n. 2, p. 134-147, 2020.
  2. SILVA, J. R.; PEREIRA, M. R.; SANTOS, C. A. Diagnóstico e tratamento do choque séptico. Jornal de Medicina Intensiva, v. 13, n. 3, p. 45-57, 2019.
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  5. PEREIRA, G. M.; COSTA, E. A.; FIGUEIREDO, R. L. Utilização de marcadores de lesão miocárdica no diagnóstico de choque cardiogênico. Cardiologia Brasileira, v. 95, n. 4, p. 123-130, 2021.
Choque - Avaliação Laboratorial Choque - Avaliação Laboratorial Reviewed by Carlos Wallace on junho 06, 2024 Rating: 5

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