Talassemias - Patogênese, Classificação, Diagnóstico e Tratamento

As talassemias são um grupo de doenças hereditárias caracterizadas pela produção inadequada de uma ou mais cadeias de globina que compõem a hemoglobina. A hemoglobina é uma proteína presente nas hemácias que transporta oxigênio dos pulmões para os tecidos do corpo. As talassemias são comumente encontradas em regiões do Mediterrâneo, África, Oriente Médio e Sudeste Asiático. Este artigo revisa a patogênese, classificação, diagnóstico, tratamento e implicações clínicas das talassemias, com base em literatura científica atualizada.

Patogênese das Talassemias

As talassemias resultam de mutações genéticas que afetam a produção das cadeias de globina. Existem dois principais tipos de talassemias:

  1. Talassemia Alfa (α-talassemia): Causada por deleções ou mutações nos genes HBA1 e HBA2 que codificam as cadeias alfa da globina. A redução na produção de cadeias alfa leva ao excesso de cadeias beta, que formam tetrâmeros insolúveis (hemoglobina H).
  2. Talassemia Beta (β-talassemia): Resulta de mutações no gene HBB que codifica a cadeia beta da globina. A deficiência de cadeias beta leva ao excesso de cadeias alfa, que precipitam e danificam a membrana das hemácias, causando hemólise.

Classificação das Talassemias

As talassemias são classificadas com base na gravidade da anemia e na quantidade de cadeias de globina afetadas.

  1. Talassemia Alfa:
    • Portador Silencioso: Deleção de um gene alfa. Geralmente assintomático.
    • Traço Alfa-talassêmico: Deleção de dois genes alfa. Anemia leve ou assintomático.
    • Doença da Hemoglobina H: Deleção de três genes alfa. Anemia hemolítica moderada a grave.
    • Hidropsia Fetal: Deleção de quatro genes alfa. Incompatível com a vida sem intervenção precoce.
  2. Talassemia Beta:
    • Talassemia Minor: Heterozigose para uma mutação do gene beta. Anemia leve.
    • Talassemia Intermédia: Anemia moderada, não requer transfusões regulares.
    • Talassemia Major (Anemia de Cooley): Homozigose para mutações graves do gene beta. Anemia grave, requer transfusões regulares.

Diagnóstico das Talassemias e Alterações Laboratoriais

O diagnóstico das talassemias envolve uma combinação de exames laboratoriais e estudos genéticos.

  1. Hemograma Completo: O hemograma completo é uma ferramenta fundamental no diagnóstico das talassemias, fornecendo informações detalhadas sobre os diferentes componentes sanguíneos.
    • Eritrócitos (RBC): O número total de eritrócitos pode estar aumentado em relação à anemia microcítica hipocrômica característica das talassemias.
    • Hemoglobina (Hb): A concentração de hemoglobina está tipicamente reduzida, refletindo a anemia.
    • Hematócrito (Ht): O valor do hematócrito também está reduzido devido à anemia.
    • Volume Corpuscular Médio (VCM): O VCM é consistentemente baixo, indicando microcitose.
    • Hemoglobina Corpuscular Média (HCM): A HCM está reduzida, indicando hipocromia.
    • Concentração de Hemoglobina Corpuscular Média (CHCM): A CHCM pode estar ligeiramente reduzida ou normal.
    • Índice de Anisocitose (RDW): O RDW pode estar elevado devido à variação no tamanho das hemácias.
  2. Microscopia de Esfregaço de Sangue: A avaliação microscópica de um esfregaço de sangue periférico é um componente essencial no diagnóstico das talassemias, proporcionando uma visão direta das características morfológicas das hemácias.
    • Microcitose: Presença de hemácias menores que o normal.
    • Hipocromia: Hemácias com palidez central aumentada, indicando uma menor concentração de hemoglobina.
    • Anisocitose: Variedade no tamanho das hemácias.
    • Poiquilocitose: Variedade na forma das hemácias.
    • Eritroblastos: Presença de células nucleadas no sangue periférico.
    • Corpúsculos de Howell-Jolly: Inclusões nucleares que indicam função esplênica deficiente.
    • Pontos Basofílicos: Pequenas inclusões granulares devido à precipitação de RNA.
  3. Eletroforese de Hemoglobina:
    • Talassemia Beta Minor: Aumento da hemoglobina A2 (HbA2) > 3.5%, hemoglobina F (HbF) pode estar ligeiramente aumentada.
    • Talassemia Beta Major: Aumento significativo de HbF, com presença mínima ou ausência de HbA.
    • Doença da Hemoglobina H: Presença de hemoglobina H (β4 tetrâmeros).
  4. Testes Genéticos:
    • Identificação de mutações nos genes HBA1, HBA2 (alfa-talassemia) e HBB (beta-talassemia).
  5. Ferro Sérico e Ferritina:
    • Níveis normais ou aumentados, devido à absorção aumentada de ferro pela medula óssea hiperplásica.
  6. Reticulócitos: Aumentados devido à eritropoiese ineficaz.

Formas de Hemácias em Esfregaço de Sangue nas Talassemias

  1. Hemácias em Alvo (Codócitos): Hemácias com um alvo central escuro cercado por uma área clara e uma borda escura, associadas a distúrbios da membrana celular.
  2. Esferócitos: Hemácias esféricas sem palidez central, associadas a hemólise.
  3. Dacriócitos (Hemácias em Lágrima): Hemácias em forma de lágrima, associadas a distúrbios da medula óssea.
  4. Esquizócitos: Fragmentos de hemácias resultantes de destruição mecânica.
  5. Elliptócitos: Hemácias em forma elíptica, comuns em alguns distúrbios hereditários.
  6. Corpos de Howell-Jolly: Inclusões nucleares que indicam função esplênica deficiente.
  7. Pontilhado Basofílico: Pequenas inclusões granulares devido à precipitação de RNA.
Fonte: CDC/ Dr. F. Gilbert.


Tratamento das Talassemias

O manejo das talassemias varia de acordo com a gravidade da doença.

  1. Transfusões de Sangue: Pacientes com talassemia major requerem transfusões regulares para manter níveis adequados de hemoglobina.
  2. Quelantes de Ferro: Necessários para prevenir a sobrecarga de ferro devido a transfusões frequentes. Medicamentos como deferoxamina, deferasirox e deferiprona são usados.
  3. Terapia com Agentes Estimuladores de Eritropoiese: Podem ser usados em casos selecionados de talassemia intermédia.
  4. Transplante de Medula Óssea: A única cura potencial para talassemia major. Requer um doador compatível e está associado a riscos significativos.
  5. Terapia Gênica: Estudos clínicos estão em andamento para corrigir mutações gênicas através da introdução de genes normais usando vetores virais.

Implicações Clínicas das Talassemias

As talassemias apresentam uma ampla gama de manifestações clínicas, variando de formas assintomáticas a condições potencialmente fatais.

  1. Complicações Cardíacas: A sobrecarga de ferro pode levar a cardiomiopatia e insuficiência cardíaca.
  2. Distúrbios Endócrinos: O acúmulo de ferro pode causar diabetes mellitus, hipogonadismo, hipotireoidismo e hipoparatireoidismo.
  3. Problemas Hepáticos: Hepatomegalia e cirrose podem resultar de deposição de ferro no fígado.
  4. Osteoporose e Fraturas: A expansão da medula óssea causa deformidades ósseas e aumenta o risco de fraturas.
  5. Infecções: Pacientes submetidos a transfusões frequentes são suscetíveis a infecções, especialmente com organismos encapsulados.

Avanços Recentes e Pesquisa

Os avanços na terapia gênica e em técnicas de edição genética, como CRISPR-Cas9, oferecem novas esperanças para a cura das talassemias. Ensaios clínicos estão em andamento para avaliar a segurança e eficácia dessas abordagens inovadoras.

  1. Terapia Gênica: Utiliza vetores virais para introduzir genes normais nos progenitores hematopoéticos dos pacientes.
  2. Edição Genética: CRISPR-Cas9 está sendo estudado para corrigir mutações específicas nos genes da globina.
  3. Novos Quelantes de Ferro: Pesquisas contínuas estão focadas em desenvolver quelantes de ferro mais eficazes e com menos efeitos colaterais.

Conclusão

As talassemias representam um desafio significativo para a saúde pública em muitas partes do mundo. A compreensão detalhada de sua patogênese, diagnóstico e tratamento é essencial para melhorar os resultados dos pacientes. Os avanços na terapia gênica e em técnicas de edição genética oferecem novas esperanças para um tratamento definitivo. No entanto, a gestão atual das talassemias ainda depende fortemente de transfusões de sangue regulares e terapia de quelação de ferro.

Referências Bibliográficas

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